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Exposição | AND YET YOU GO ON

06 de Novembro a 04 de Dezembro de 2020

Vista da Exposição. Fotografia: Samuel Duarte



EXPOSIÇÃO COLECTIVA:

Lea Managil, Pedro Cabrita Paiva e Primeira Desordem


TEXTO:

João Seguro


(e no entanto avança-se) SOB O ASTRO MUDO


Num dos mais estimulantes ensaios (1) sobre a obra de Samuel Beckett, Alain Badiou trabalha um conjunto de ideias operantes na obra tardia do autor, tomando Wostward Ho (1982) como momento fulcral desse trabalho do “ritmo do pensamento”. Badiou começa o texto enunciando que esta obra de Beckett tem como principal prerrogativa, não a configuração do pensamento, mas acima de tudo a sua pulsão vital, a sua atividade de deslocação.

(...)

Um grupo de artistas que partilha as coisas mundanas dos dias, o espaço de trabalho, junta-se para fazer um relato da movimentação dos seu pensamento sob a forma de uma exposição. Uma exposição que terá como atributo principal esse ritmo do pensamento que por vezes escapa (ou é alheio) à forma da obras, à sua natureza física, que encontra o seu fulgor fora do seu corpo, nas aproximações àquilo que a circunda, e nas lógicas dessas trocas.

O modo é silencioso, o ambiente é escuro, a iluminação conta que estamos “no céu cinzento sob o astro mudo”(2), há uma orquestração da iluminação que nos conduz a uma experiência teatral do espaço expositivo, mas essa teatralidade contrasta com a crueza despudorada das obras, a marcar o ritmo da impaciência do nosso tempo. As obras espalhadas pelo amplo espaço identificam-se como ilhas que flutuam na quase penumbra. A exposição é composta por intervenções escultóricas e peças áudio-visuais que motivam entendimentos cruzados.


A dupla Primeira Desordem apresenta duas pequenas esculturas e um filme. Sem título (2020) é uma trança, feita de fios elétricos, alusão ao universo tecnológico e cinematográfico. A trança é um atributo típico de poder simbólico e um insígnia de pertença tribal, sendo comum encontrar tranças associadas a personagens de cinema mas também na história da escultura pois a Mulher de Willendorf ostenta na cabeça uma ornamentação que tem sido descrita como uma das mais antigas representações de tranças. A peça dos Primeira Desordem põe em diálogo o carácter simbólico da trança como atributo físico e a configuração em trama utilizada num sentido prático para a junção de cabos elétricos, aproximando a qualidade simbólica e poética da violência pragmática.

A segunda peça é uma pequena escultura de uma claquete Sem título (2020) - outra referência à indústria cinematográfica - cuja barra está dividida ou partida em cinco partes, sugerindo o formato de uma mão com cinco dedos a acenar ironicamente, como que a dizer olá ou adeus. Ambas as esculturas têm em comum uma escala diminuta que, pela sua disposição no chão do espaço, nos fazem indagar acerca da arbitrariedade do gesto. Parecem despojos deixados ao acaso, elementos de uma ação passada deixados para trás como vestígios. Por fim o filme Stones as themselves (2018) onde ensaiam, nos créditos do filme, a discrepância simbólica entre ator e intérprete, verdade e encenação. A imagem fixa do monte de pedras e a sua curta duração é também o testemunho que nos faz especular acerca da verdade da ficha técnica e das hipóteses de a ficção e a realidade se cruzarem dentro e fora do objeto cinematográfico. O conjuntos das três peças é portanto uma declaração acerca dos dispositivos de espectacularização e ecoa a dificuldade que temos em lidar hoje com tais dispositivos porque se admite, como notou Brecht que “controlamos esses dispositivos quando na verdade somos controlados por estes (...) o que nos leva ao hábito generalizado de ajuizar se tal obra é adequada ao meio técnico em que é executada sem nunca se tentar questionar se o dispositivo é proficiente para essa criação.”


No centro da sala sob um foco com luz direcionada, um objeto excêntrico projeta a banda sonora que ritma os nossos passos. Soundcheck (2020) de Lea Managil cadencia infecciosamente a experiência física do lugar – observamos ao longe um microfone e um ruído repetido e mecanizado. Quando nos aproximamos percebemos que o som é proveniente do toque de um dedo automatizado que vai repetindo as típicas pancadas quando se precisa de confirmar a amplificação. O som amplificado pela sala e a repetição mecanizada tornam-no ambivalente, entre o ruído fisiológico e ruído psicológico (distinção feita por Roland Barthes) e que conduz a nossa atenção pela exposição, sujeitando-nos a um estado de ansiosa vigília nervosa.

Este estado latente de inquietação parece ser a medida da exposição, pois a colocação das obras em ilhas que se exacerbam pela encenação da iluminação denota a compartimentação e segregação nos modos de vida contemporânea. Jacques Attali em Bruits: Essais sur l'Économie Politique de la Musique (1977) indica que “os ruídos da nossa sociedade antecipam as suas imagens e os seus conflitos”, talvez estejamos perante (e dentro) de um perpétuo teste sonoro a um presente absurdamente incapaz de antecipar o seu futuro próximo.

Lea apresenta-nos também Announcement (2020) que nos aparece de súbito por detrás de um pilar, a artista auto-representa-se num vídeo a vocalizar um anúncio. O plano enquadra a parte inferior da sua cara e o seu pescoço - enquanto entoa o anúncio em inglês o seu dedo indicador direito vai desviando ou obstruindo o normal movimento dos seus lábios, provocando um conjunto de cortes, distorções e desvios que comprometem a coerência e univocidade da mensagem original. A peça está suspensa num pequeno ecrã à altura da nossa cabeça. Pode-se dizer que a artista introduz deliberadamente um fantasma na máquina da comunicação que é a linguagem oral como que a sublinhar o quão falsa é a suposta neutralidade da mesma. Por fim a artista apresenta Peça de som para ruminantes (2020). Um microfone pousado num pequeno tripé de chão - da grelha que cobre o captador do microfone saem pequenas ervas.

Especulamos acerca do dispositivo de captura de som, da sua adequação à aproximação de seres ruminantes, ora porque precisamos de nos aproximar da natureza, ou porque queremos registar a existência e desenvolvimento da mesma, quando toda a tecnologia que temos ao dispor não nos permite de forma alguma capturar as teias relacionais que se desenham hoje entre o humano e o não humano, entre o tecnológico e o biológico. Lea Managil endereça a sua obra a um consílio misterioso de antílopes, girafas, cabras, vacas e veados, camelos e lamas. Apesar da impossibilidade prática de estes serem realmente as criaturas a quem a sua obra se destina enquanto público, ou do instrumento de gravação ser dedicado à sua utilização, o que se infere é a ironia das trocas que se podem imaginar deste estranho intercâmbio.


De Pedro Cabrita Paiva duas peças que questionam a força simbólica e potencial e o poder da resistência e da passividade dos materiais. Primeiro uma estrutura de metal que encima um candeeiro de rua Accident #3 (2020) a uma altura superior à escala do corpo humano, requerendo um olhar contra-picado do observador. Sem lâmpada, inibe o objeto de cumprir a sua função de iluminar, mas no chão, aos nossos pés, um outro objeto bolboso, partido em cacos, que parece ser o globo que serviria para filtrar a luz saída do candeeiro, e que agora irradia luz da sua própria superfície como se por alguma ação mágica tivesse ganho a capacidade de iluminar. Traz à memória o candeeiro omnipresente em tantas cenas de rua do imaginário cinéfilo, mas a sua verdadeira

identidade assemelha-se à desconcertante pertinência evocativa que os objetos, muitas vezes inoperantes, possuem no teatro beckettiano. No teatro de Beckett os objetos possuem muitas vezes a condição de um personagem e a iluminação de cena é também tratada como um poderoso elemento discursivo.

Nesta obra Pedro Cabrita Paiva condensa a mise-en-scene beckettiana do objeto significante com a personificação absurda do globo caído do candeeiro com a própria luz. Em Sem título (2019) Paiva apresenta um vídeo no qual explora a tensão de forças entre objetos. Um lápis que é girado pela força de uma aparafusadora que na outra extremidade é desgastado pelo corte passivo do afia. É uma peça que interroga a ação ou a inação como forças complementares.


Voltamos o nosso olhar ao espaço da exposição e tentamos organizar num único momento os elementos que nos interpelaram individualmente e que dirigiram o nosso itinerário. Voltar a percorrer a exposição permitirá articular uma estrutura, uma função e reconhecer os processos que possibilitam imaginar os “ritmos do pensamento” e a orientação dos fluxos que se desenham com a nossa presença neste território comum - um arquipélago feito de ilhas ou um corpo feito de órgãos comunicantes.



(1) Ser, Existência, Pensamento: Prosa e Conceito; in Meditações Filosóficas Volume II, Pequeno Manual de Inestética; Instituto Piaget, Lisboa, 1999

(2) Zeca Afonso, letra da música “Os Vampiros” (1963)



CONSULTAR TAMBÉM:

Texto de José Pardal Pina | Umbigo Magazine





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